Saturday, May 12, 2012

Acabou de me ocorrer um episódio até então engavetado nos vários corredores da minha mente gasta. Eis que estávamos em Assis, na época em que morava só em uma kitnet próxima ao centro da cidade. Não me lembro exatamente o motivo pelo qual começamos a recitar e o conto abaixo marcou minha alma a ferro quente. Certamente um dos participantes daquela noite lembrará da cena:

No restaurante - Carlos Drummond de Andrade
  - Quero lasanha. Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia - entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha. 
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais. 
- Meu bem, venha cá. 
- Quero lasanha. 
- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa. 
- Não, já escolhi. Lasanha. 
Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato: 
- Vou querer lasanha. 
- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão. 
- Gosto, mas quero lasanha. 
- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá? 
- Quero lasanha, papai. Não quero camarão. 
- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal? 
- Você come camarão e eu como lasanha. 
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo: 
- Quero uma lasanha. 
O pai corrigiu: - Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada. 
A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou: 
- Moço, tem lasanha? - Perfeitamente, senhorita. 
O pai, no contra-ataque: - O senhor providenciou a fritada? 
- Já, sim, doutor. 
- De camarões bem grandes? 
- Daqueles legais, doutor. 
- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo? 
- Uma lasanha. 
- Traz um suco de laranja pra ela. Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte. 
- Estava uma coisa, heim? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. 
- Sábado que vem, a gente repete... Combinado? 
- Agora a lasanha, não é, papai? 
- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo? 
- Eu e você, tá? - Meu amor, eu... - Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha. 
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultra-jovem.